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CUTI. Dois nós na noite e outras peças de teatro negro-brasileiro. São Paulo : Eboh, 1991. 152 pág.



(sinopses)

Dois nós na noite!: uma mulher, tendo a seus pés o marido desacordado, expõe seu ciúme em face da recordação de suas rivais. Ver análise da peça em Teatro/Crítica.

Transegun: um grupo de movimento negro, dedicado a montar peças de teatro, enfrenta crise quando um dos membros do grupo contrai o vírus HIV.

Madrugada, me proteja!: um homem, após despedir-se de um amigo, depara-se com um ladrão, com o qual passa a dialogar, revelando as várias facetas do assalto que sofre.

Canção da saga: monólogo histórico-poético a respeito da vida afro-brasileira diante da realidade racial do Brasil.

Nódoas: um adultério resulta em frustrada ação vingativa que mergulha no mundo surreal.


CUTI. Dois nós na noite e outras peças de teatro negro-brasileiro. 2ª edição revista e ampliada. Belo Horizonte : Mazza Edições, 2009. 184 pág.

      Idem + 6 esquetes

DOIS NÓS NA NOITE

p.11-24

(monólogo em 1 ato)

Personagem


JUDITH

Mulher negra aparentando idade entre 30 e 40 anos. Cabelos crespos.

Cenário


SALA

Residência de classe média. Um sofá, poltronas, etc. O televisor deve estar, a princípio, longe do sofá.



PRIMEIRO QUADRO

Judith, de pé, olha  corpo de um homem negro estendido sobre o sofá. Senta-se num poltrona.


JUDITH - Por que, meu amor? Por quê? Que revolta eu te causo, assim tão violenta? De repente me pego pensando ser a razão de tudo, de tudo o que te magoa. Até o fato mesmo de não ser...


Levanta-se, como diante de uma ideia ousada que não tem muita segurança em expressar. Caminha sob um foco.


JUDITH - É... Bem... Sabe, eu sempre senti isso em você, mas... Como é que eu ia dizer, sem me sentir diminuída, sem que você me chamasse de complexada, de atrasada, de... De tudo!? Mas.. Você se lembra das fotos? Você guarda fotografia de todas elas! Todas...? Bem, não sei, talvez... E eu devo conviver com isto. Ora, fotos, o que são fotos? Vivem na gaveta com teus papéis, na gaveta de teus documentos... São documentos também. Talvez decretos, projetos de lei, leis, medidas-provisórias ou talvez mesmo... É, quem sabe, a tua própria constituição. Você as mantém desde quando namorávamos. Você, tão trabalhador, tão honesto e, ao mesmo tempo sedutoramente despojado, colorido, à vontade, cabelo black is beautiful, uma conversa louca, um mundo verbal, fantásticos universos saindo-te da boca como pássaros brilhantes espargindo luz por todos os lados, deixando-me multicor nos meus afetos, na minha redenção, tirando-me do cativeiro que a educação tinha me colocado junto à solidão. Você, você, você maravilhoso, príncipe dos meus sonhos... Meu hippie, meu iuppie, meu homem fervoroso de tantos fogos inusitados, tesão sempre nova, a primeira cama onde se abriu a minha rosa-choque, minha romã-desfolhada-em-flor...Lembra do apelido?... Ah, sempre eu me sentia frutofolhaflor nos teus braços. Nossa nudez única, sem abismo, sem sobressalto, denso rio de prazer noturno...



Volta-se, procurando o interlocutor. O safá e o homem se perderam na escuridão.



JUDITH - (Orgulhosa) Viu como eu sou poeta? Viu como sei pintar minhas emoções, com liberdade entre os lábios, com este vento interior que move a capacidade de falar, de refletir, de analisar, de ver o mundo? Eu posso me expressar livremente.


A luz sobre Judith vai se extinguindo ao mesmo tempo em que ressurge sobre o sofá, onde se vê um enorme peixe fisgado, na mesma posição anterior do homem. A linha se perde no alto.

JUDITH (Do escuro) - Eu posso. Sim, eu posso!



O rosto de Judith reaparece num espelho suspenso.



JUDITH (Profunda decepção) - Sim, eu posso... (Soletra) Des-de-que-vo-cê-es-te-ja-dor-min-do... (Vai pintando os lábios com um batom vermelho e brilhante) E por que isso?



Inicia-se o som de carretel de vera de pesca, bastante acelerado, mas o peixe vai sendo içada lentamente, marcando assim um contraste de ação (som e movimento). A imagem de Judith desaparece do espelho e a personagem ressurge.



JUDITH (Agressividade crescente) - Sabe por que, meu amor? Quando você dorme, quando você chega com sua bebedeira encharcada, sua lama alcoólica de tanto desespero sem razão aparente, e cai balbuciando palavras de tons polidos, entremeadas de “meu amor, eu te amo” e me designa por uma lista imensa de flores brasileiras, como se procurasse uma que me definisse... Depois deste turbilhão de pouco fôlego, meteoro de palavras no teu céu confuso, aí, no momento em que te sei incapaz de me ouvir e ver, então tenho a certeza inquestionável de estar só, inteiramente só com todos os teus documentos. Sim, os documentos que você guarda na gaveta, aqueles rostos acariciados por tuas mãos... Penso: teriam sentido um prazer real num beijo real, lábios com lábios, língua com língua, saliva com saliva? Quando o conheci, você bebia pouco. Talvez antes nem bebesse essa mistura explosiva que te eleva às alturas ao mesmo tempo que te joga neste estado. Tenho a certeza de que este sono é apenas a incapacidade progressiva de me ver. O arrependimento tardio. Eu sou bonita, não sou? Mas, e as fotos, e elas todas, os documentos mais importantes da tua vida? Onde vai, meu amor? Que céu é esse que você procura com tanta bebedeira inexplicável, esse tropeçar em angústias?...


Pausa. O som do carretel de vara de pesca diminui de intensidade. O peixe está alto. Ganha brilho. Balança, sem movimento ascendente.

JUDITH (Dirigindo-se ao público) - Eu sei. Eu tenho certeza. Você foge de mim. Foge sim, nem adianta mentir. A ternura agora já não pode mais me seduzir. Chega! Quem quiser te encontrar... Não, não precisa caminhar nos teus sonhos, não necessita percorrer a tua biografia, passar pelos teus sucessos profissionais e decepções, ou lembrar a infância difícil, nem necessita percorrer as reuniões do Movimento Negro, aonde nos conhecemos. Não é nessas paragens que podemos encontrá-lo. Não é aí que se situa o céu no qual você mergulha, mergulha, mergulha... (Em desespero) Mergulha completamente bêbado! (Pausa) Não... Quem quiser topar com você é só abrir a tua gaveta, é só abrir teus guardados...

O peixe mergulha no alto e desaparece em meio a forte luminosidade, um espargir de luz.

SEGUNDO QUADRO

Judith ressurge cercada de sete manequins brancos e femininos. Cada manequim traz uma peruca diferente. Estão vestidos para vitrine, em posições diversas, porém harmônicas no seu conjunto.



JUDITH (Ainda para o público) - É só olhar para o rosto de cada uma delas, é só fixar o olhar 3 X 4 de cada uma delas para perceber onde se encontra o final da viagem que você inicia no vício e passa por essa reiterada tentativa de suicídio. Aqui, eu sei, é o descanso da tua enorme mentira que eu sou, querido. (Dirige-se a um dos manequins) Não é mesmo, Kátia? Qual o descanso que você proporcionava a ele, hein? (Retira a cabeça do manequim e passa a dialogar com ela) Ah, certamente é este céu que ele procura em mim e não encontra. O azul. Onde se escondem os anjos, a pureza, o dia que a todos regozija... É isso, Kátia? Só pode ser. Você tem os dentes podres, um nariz de tucano... Ah, ah, ah... O teu bafo de sardinha estragada... Ah, ah, ah... Ele me contou... Você abria a boca e ele... (Ao público) Não é, meu amor? (Voltando-se para a cabeça do manequim) E ele quase desmaiava. Teve uma vez que até sentiu ânsia de vômito e saiu com uma desculpa de que havia comido sardinha deteriorada. A sardinha era você, minha santa, era você!...



Judith atira a cabeça do manequim.



JUDITH (Para si) - Só podia ser este azul. Ou, quem sabe...



Vai em direção à cabeça que fora lançada e dela retira a peruca, colocando-a sobre a sua própria cabeça.

JUDITH(Para si) Talvez... Pode ser que eu fique bem assim, mesmo sem o azul... (Dirige-se a outro manequim) Você não acha, Cristiani? Afinal, no meio dos olhos sempre haverá um negro sem fim, o milagre preto da visão. O que está em volta é só enfeite, seja castanho, verde, claro, escuro e até azul. É através do preto que o mundo se forma no espírito, é através do preto...



Apanha o manequim e cola-o em posição mais visível, distanciado dos outros.



JUDITH - Através do preto que se bebe a imagem do mundo. É o preto que nos amamenta de formas novas... É o preto que nos amamenta.



Vai retirando a cabeça e os braços do manequim. Por fim, separa o tronco da parte inferior e abraça-o.



JUDITH (Para o torso do manequim) - Não é mesmo o preto que nos amamenta? Diga, Cristiani!



Pausa. Põe-se a fitar longamente as mamas do manequim e começa a sugá-las sensualmente.



JUDITH (Enlevada, para o público) - Está bem, querido, está bem... Assim... Eu sei que você queria era isso mesmo. Não era? Tetas leitosas, sem contraste com o leite, não é mesmo? Não foi isso, querido, não foi?...



Abandonando abruptamente a sensualidade.



JUDITH (Para o busto) - Ele chegou a pronunciar o teu nome, entendeu? Eu me chamo Judith! Não tenho seios volumosos como os teus... (Desafiadora) Mas, por outro lado, queridinha, ah... ah... ah... Eu tenho bumbum, sabia? Sabe o que ele me falou de ti? Ah, não sabe? Ele me disse que quando passava as mãos pelo teu traseiro, ele se confundia. Só faltava os pelos para parecer com teu dianteiro. Em você não se aproveitava nada além dos seios. Feia! Feia! Horrorosa, achatada, vaca leiteira!...



Atira o torso do manequim. Passa em revista os cincos outros manequins.



JUDITH - Preciso furar os olhos de todas vocês. Vocês olham, mas se negam a ser vistas. O olhar de vocês está sempre algum degrau acima. Minha sensação é a de quem gravita em volta, satélite dessa tal beleza, essa sedução, essa coisa que me violenta e me impulsiona a ser o que não sou. Essa necessidade de ser igual, igual, igual...



Pára, como se tivesse esquecido de dizer algo para alguém que se distancia.



JUDITH (Apelativa) - Cristiani, espere... Esqueci... Você pode me emprestar? Bem, pode ser que seja útil para mim. Ahn? Ah, sim. Um dia eu te devolvo.



Apanha a peruca do chão e coloca-a sobre a que está usando. Arruma-as.



JUDITH - Obrigada, querida. Ah, sim, ele vai gostar. Tenho certeza. Adeus. Lembranças em casa. (Voltando-se para o público) Fiquei bem, querido?

TERCEIRO QUADRO

No palco surge apenas a luz de um televisor fora de sintonia. Comerciais em off, vai sendo revelado o sofá sobre o qual está situado o televisor, o mesmo lugar em que, antes, estivera o homem e depois o peixe.

COMERCIAL 1 (Voz sedutora)

Shampoo Nuage deixa seus cabelos macios, sedosos, irresistíveis... Com Nuage ele se sentirá muito mais próximo do céu e te entregará todas as estrelas de carinho... Nuage, o seu shampoo... E o dele.

COMERCIAL 2 (Voz agressiva)

Não deixe seu cabelo assim!: duro, quebradiço, sem cor e sem brilho! Use o alisante perfeito para qualquer tipo de cabelo. Alisabosa, o único feito com babosa selecionada. Vá correndo à primeira farmácia e... (Aliciante) Deixe o vento ventar...

COMERCIAL 3 (Voz serena)

Em matéria de cabelo, eu descobri. Prático, tanto na embalagem quanto no uso. Nada de ficar ensaboando, lavando. Não. Você passa após o banho e... Quando ele chegar, você perceberá o efeito naqueles olhos que serão só seus. Hum... Faça o teste. Amaciante Look for Me, a lembrança dos cabelos mais íntimos...

A tv é desligada.

QUARTO QUADRO

Judith sustenta a metade de um manequim (da cintura para baixo). As pernas deste estão sobre os ombros da personagem, que mantém o rosto voltado para o colo do manequim. Os quatro outros encontram-se agora totalmente cobertos, cada qual com um pano roxo, tipo saco, até os pés. Estes manequins movem-se muito lentamente.

JUDITH - Marina, você é minha maior inimiga. Era aqui que ele mais feliz se morria. O que você possuía no meio dessas pernas que o seduzia tanto? Me contaram que você era prostituta de luxo... Não importa o luxo. Era prostituta! Ele, assim mesmo, vinha fundear a vida entre seus loiros pêlos, esse “trigal macio”, como dizia um poeta. (Pausa) Você deve ser muito funda, de forma que ele não te alcance nunca, por mais que penetre a tua carne. Assim, ele deve vir sempre tentar de novo, tentar te machucar... Deve ser isso. Porque ele me confessou que a única coisa que queria com todas vocês era atingir um objetivo muito definido: fazê-las gemer! O quê? Prazer? Não, não era de prazer. Era de dor. Ele me disse. (Pausa) Me disse? Ora.. Ora... Era como se tivesse dito. Não é preciso o uso da palavra para demonstrar o impulso que nos projeta adiante... Exatamente como ele devia se projetar em você: “A mulher mais funda que eu conheci”. É, ele me falou isso, meu bem? Ou quase isso? Talvez nem tanto, ou não com essas palavras... (Para o colo do manequim) Ora! Não devo me preocupar com uma puta. Loira, mas puta.

Atira a parte do manequim. Pára. Apanha-a. Analisa-lhe as “reentrâncias’. Mira a “vagina” do manequim.


JUDITH(Chamando) Meu bem, volta! Sai daí, por favor. Esse lugar não tem saída. O suicídio é o final deste túnel. Os gemidos são todos falsos... Meu amor, volta! É de ti que eu preciso.


Lança de novo a parte do manequim. Apanha, em seguida, uma peruca loira.


JUDITH - Se você quiser eu me enfeito mais, dou um trato no visual... Olha, vê se eu fico bem assim?


Neste momento os manequins cobertos já estão distanciados uns dos outros. Judith coloca a terceira peruca sobre as duas que já estão sobre sua cabeça.


JUDITH (Sedutora) - Você gosta? Então, meu bem... Sai daí, sai... Essa gaveta te sufoca. Essas fotos te mantêm aprisionado. Eu te quero livre no meio do meu abraço. Não é ciúmes, não. Acredita. Sai, meu amor, sai...





MADRUGADA, ME PROTEJA!

(monólogo em um ato)

(versão ampliada, posterior à edição do livro)



Personagem
CELSO
Rapaz negro. Idade entre 30 e 40 anos. Usa terno e gravata.
Cenário
Mesa de escritório abarrotada de papéis, telefone, etc. Ao lado um computador.
Uma rua de bairro grã-fino. Um muro alto guarnecido com grades.



PRIMEIRO QUADRO

Mesa de escritório abarrotada de papéis, telefone, etc. Ao lado um computador.

Celso trabalha freneticamente. A princípio, sem ser ouvido, atende telefone, digita, assina papéis, levanta-se, sai de cena, retorna com mais papéis e pastas e continua trabalhando. Atende ao telefone. Ouve por um tempo. Em seguida, ruídos de automóveis da rua.



CELSO
Ao telefone.



Meu amor, eu sei que você vai precisar do meu carro, mas hoje eu vou chegar tarde. É, desculpa, eu tenho um jantar com um cliente importante. É, vou com o Osmar. O quê? Balada? Que balada o quê, minha querida... Eu sei, meu amor, fica calma. A gente está conversando. Você sabe da minha condição aqui. Essa parte de relações com clientes a gente precisa fazer... Eu sei, tudo bem, você não gosta dele. (Observa em volta para certificar não estar sendo ouvido.) Só que, meu amor, o Osmar é meu chefe. E, além disso, é filho do dono. Como é que eu vou dizer que não vou quando se trata de projetos de interesse da empresa? Bem, dessa vez... (Pausa. Ouve de forma impaciente, enquanto tenta trabalhar.) Está bem... Certo... É longe, eu sei... Meu amor, eu já tinha te avisado que ia ter compromisso hoje. Você já me ligou cinco vezes... (Pausa. Ouve.) Não, meu bem, não é que eu não goste de conversar com você. É que eu estou com tanto trabalho, entendeu, que não dá pra conversar por muito tempo. Então, faz assim ó, você leva o Bruno pra casa da mamãe... (Pausa. Ouve impaciente. Agita-se. A mulher está do outro lado da linha bastante nervosa.) Tudo bem, tudo bem... Eu ligo, pode deixar que eu ligo, não tem problema. Eu ligo pra ela e explico tudo direitinho. Ela fica com o Bruno, sim... Você sabe, ela adora o neto. O quê? Ah, meu amorzinho, você sabe como é avó... Talvez por um ciumezinho besta que ela disse aquilo... Deixa pra lá... Não, não fala assim da minha mãe. Vê bem que eu nunca falei assim da Dona Antonia, falei? E olha que a tua mãe já me humilhou bastante. Ou você já esqueceu? (Pausa. Ouve impaciente.) Ah, é, já faz tempo? Só que pra quem apanha não é tão simples esquecer a surra. Não dá pra apagar com borracha ou passar um branquinho em cima. O quê? Ah, perdoar eu perdoei, tanto é que fico na boa com ela, tenho maior respeito. Mas, olha, tudo aquilo que ela falou, tenho certeza de que se eu não fosse negão ela não ia falar. É... Perdoar é uma coisa, esquecer é outra. (Pausa. Ouve, ainda impaciente.) Não, minha querida, só falei pra você não pegar pesado com a minha velha, certo? Bem, eu preciso trabalhar, meu amor, desculpe. Vamos fazer o seguinte: como não vai dar para eu chegar a tempo de você ir com a Pajero, você pega um táxi... (Pausa.) O quê? Ah, faça-me o favor!... Esses emails que você recebe são só pra assustar. Uma hora é que estão assaltando com spray de pimenta, outra hora é o golpe da batida na traseira, da garrafinha pet com sonífero na água... Agora, mais essa: taxista assaltante! Ah, meu bem, sem neura, sem neura. Além disso, você se liga nesses programas que só mostram crime na cidade!... O quê? Meu amor, eu não tenho culpa se você quis comprar o Honda Civic da sua melhor amiga. Eu ainda avisei: carro usado dá problema!... Você não quis me ouvir. Ainda fez gozação do meu porque era carro de brucutu, tanque de guerra e coisa e tal, lembra? (Pausa. Ouve.) É, liga pro rádio-táxi. É seguro. Além do mais, se você vai com a Tânia e a Marcela nenhum taxista vai querer folgar. Isso, meu bem, vai dar tudo certo. Tá, eu ligo pra oficina. Apesar de que à essa hora... Eu sei que o cara prometeu o carro pra hoje, mas, sabe como são os caras... Essa história de peça é tudo desculpa, meu bem. Os caras não dão é conta do serviço! Humm... Qual o problema? Não, não se preocupa se elas quiserem ficar, nem em pegar carona pra voltar. Já contrata um motorista pra ir buscar você, tá bem? Isso! Ok! Explica pra Celinha que não deu pra eu ir e que eu mandei um beijo e os votos de muito sucesso pra ela, viu? Tá, meu amor. Se eu chegar mais tarde que você, fica despreocupada. Não precisa me ligar que eu estou chegando. O quê? Eu? Que isso? É jantar de trabalho. Ah, se pintar mulher no lance o dou o número de seu celular, certo? (Ri.) E você, olha lá, hein! (Ri.) Não, não precisa. Não vou querer falar com marmanjo nenhum, não. Depois eu peço o relatório pra meninas pra saber se você se comportou... (Ri.) Tá bom... Tcháu! Um beijo.

Levanta-se e caminha.



Como é dura essa história de viver casado. É um controle da porra! A gente não pode dar um rolezinho que já vem cobrança. Bom, também 9 anos junto, o prazo de validade já deve estar quase vencido... Eu gosto da Eva, mas é que mulher... Hoje, por exemplo, mesmo com a formatura da prima, vai acordar quando eu chegar. Toma lá umas cervejas, chega em casa, se eu não estiver, apaga. Mas, é só eu colocar a chave na fechadura, pronto, começa a confusão de sempre. (Imita jocosamente a mulher.) “Com quem você esteve? E esse batom aí no paletó? É batom, sim! Tem até cabelo de mulher na tua roupa! Você esteve onde mesmo?” Aí não adianta dizer que é o batom dela mesma que ficou no paletó que ela não mandou pro tintureiro, que tem funcionária na empresa e às vezes o ventilador joga cabelo na gente e que eu estive trabalhando... Nada, nada disso faz a nossa noite menos tensa. Até que, com o falatório, acaba por acordar nosso filho, que vem e para na porta, como quem diz: você não vai bater na minha mãe, vai? Só falta me mostrar a lei Maria da Penha. Vou lá, pego o Bruninho no colo, com todo aquele peso dele, e levo pra cama e lá mesmo no quarto dele aproveito pra dormir, depois de dizer que a mamãe só estava nervosa e que logo passa etc. Dali a pouco, eu já mergulhado no sono, lá vem ela me puxando, me puxando... Saio sem fazer barulho. Aí, de novo, ela quer discutir. Agora, não quer mais saber aquelas coisas, onde fui, com quem estive... Não. Quer discutir a relação, se eu perdi o desejo por ela... Se eu arranjei outra... Que faz tempo que a gente não sai... Nas reuniões da empresa eu nunca levei ela junto... Esqueci o dia em que nos conhecemos... Não comemoramos mais nosso casamento e, por fim, que quer dar um irmãozinho para o Bruno e eu até hoje não me decidi. E aí, começa (Imitando.): “Lembra o que você me disse no aniversário da minha mãe?... Lembra aquela piranha que você ficou todo gaiato pro lado dela no carnaval?... Você prometeu que nunca mais...” E por aí vai. Quando eu vou ver, o sol já está raiando. Aí, ela fica excitada. Fazemos amor, ela dorme e eu desmaio. Só não entendo o que está acontecendo. Será que é a idade? Ela é um pouquinho mais velha do que eu... É, sete anos não é muito, apesar de minha mãe reparar nisso até hoje. Outro dia chegou a dizer que a Eva já anda com código de barra no rosto e que, se for ao supermercado, vão ver que ela não vale nada. Minha mãe também é terrível. Absurdo! Minha mulher tá com tudo em cima. Ainda bem que na frente dela e dos outros minha mãe mantém a pose, com uns pequenos deslizes, como essa história que envolveu o Bruno. A Eva liga pra ela, pedindo pra ficar com nosso filho e ela (Imita.): “Meu neto vai sempre ser bem recebido, mas creche que eu saiba não funciona à noite.” E as danadas não se pegam. Sobra pra quem? Uma num ouvido, a outra no outro. E eu nessa: calma, não é bem assim, trata bem a fulana, ela não é isso, respeita... Homem não devia ter mãe, devia nascer, sei lá, do tronco de uma árvore, uma árvore mesmo, que não falasse nem tivesse ciúme. Ah, homem também jamais devia se casar. Só amizade colorida! Ficar, ficar e viver ficando... Ou então, fazer igual uns por aí que, na hora de dizer o “sim”, desmaiam e a noiva desiste. Mas, quem vai desistir de me aporrinhar essa noite vai ser a Eva. Eu conheço o pessoal da prima dela. Vai ter a cerimônia da entrega do canudo... Puxa, a Celinha com vinte e quatro anos já formada em Direito! E vai ser delegada! Também, o pai investigador de polícia, o irmão sargento do exército, tudo isso deve ter influenciado. Mas lá a negrada é festeira. O pai dela já deve ter armado o que ele chama de ceia... Até a meia noite, só petisco e a bebida. Comer mesmo o principal só depois dos dois ponteiros se juntarem no número 12. É ceia mesmo! E dá-lhe pagode! Sobremesa, lá pelas duas. Hoje, chego bem antes da Eva! Aí, quando isso acontece, ela fica uns dias toda culpada, me tratando como se eu fosse um rei. Ela, quando chega depois de mim, tira o sapato, entra só de meia, como uma ladra. Abre a porta do quarto, já só de calcinha e deita bem de leve, toda culpada, do que, eu não sei... Aí, fica um doce na semana. Parece que tem medo de eu jogar uma desconfiança na cara dela. Eu fico na minha. Já sei que vou passar uns bons dias sem discutir a relação. Aliás, isso já virou mania pra ela. Vou ter, pelo menos, uma semana de folga! Será que isso nela é reflexo dos hormônios? Pode ser que a tal menopausa começou a rosnar... E arranhar (Imita um felino exercitando as garras.). Mas, a Eva é uma excelente mulher. (O telefone toca.) Alô! Oi, Osmar! Tudo bem. Não, não estava fora do gancho não. Eu estava atendendo um cliente. É, era o doutor Leão. Você sabe como ele fala, não é? Então, tá tudo certo pra hoje à noite? Só que me dá um tempinho a mais. Já passei a revisão do contrato pra digitar e só dar uma olhada final e enviar pra manter a excelência e não arriscar perder o cliente... É, o contrato da loja de armas, lembra? Você ficou de revisar, mas passou pra mim, né, pra variar... Não, tudo bem. Só que vou precisar de mais uma hora pra terminar, certo? Bom, depois a gente relaxa... Ha, ha, ha... Já comprou o Engove? É bom se precaver. Ha, ha, ha... Quantas minas? Quatro? Vamos ter de ir com os dois carros... Ha, ha, ha... Eu gosto de dirigir tua máquina, só que dessa vez, como vai ficar apertado, eu é que vou atrás e você vai de chofer, certo? Ha, ha, ha... Bom, agora são 19:15... Mais uma horinha e eu finalizo isso aqui. Ah, Osmar, falou com o velho? É, sobre a promoção... O quê? Só o mês que vem? Osmar, o mercado tá bombando, véio! Tá pintando uma proposta boa, meu caro... E é concorrente... Hum... Ele cobre qualquer uma? Certo, só quero ver. Tá legal... Olha, hoje não vou ficar até tarde não. Já falei pra você. No máximo às duas quero estar em casa, certo? É... Tá, pode me zoar, mas não esquece que teu casamento tá marcado. Aí você vai ver o que é bom pra tosse. Como diz a minha irmã, a boca fala, o fiofó paga. O quê? Ah, você está muito bem laçado. Ha, ha, ha... Beleza!... Até mais.



Celso trabalha exaustivamente. Sai e retorna com o contrato. Relê, revisa. Sai, retorna. O tempo passa. Fala ao telefone. Por fim, ante o computador, após enviar o contrato corrigido, sente-se aliviado. Relaxa.



Ufa! Até que enfim! Agora, balada. (Vai se arrumando para sair. Depois de colocado o paletó. Tira o celular do bolso e coloca-o na gaveta.) Celular, vou esquecer na gaveta, (Acentua.) ligado! (Ensaia seus argumentos.): “Sabe meu amor, saí correndo hoje que até esqueci o celular. Hoje lá na empresa foi uma agitação o tempo todo. Você sabe, o celular fica na mesa, no meio da papelada...” Ah, e as duas baterias de reserva que a dona Eva me deu? (Pausa. Pensa.) Bem, acho melhor eu levar as baterias. Deixar tudo vai parecer que fiz de propósito. Hoje a Eva nem vai dar flagrante via Embratel, nem roubar meu sono. (Pausa.) E o carro? Ensaia: “Minha querida, o Osmar insistiu pra gente ir com o carro dele que tem mais presença. Isso influi nos negócios, passa mais confiança para o cliente. E ele me trouxe até em casa.” A merda é que ela detesta o Osmar!... Bem, s’imbora! Nem só de trabalho vive o homem e ninguém é de ferro! 

SEGUNDO QUADRO
Uma rua de bairro grã-fino. Um muro alto guarnecido com grades e cerca elétrica.

É madrugada.


CELSO
(Em off.)



Não se preocupa não rapaz!... Eu tomo um táxi. Vai dormir ... Não, não estou de porre poxa! Tchau! Até segunda. Vai descansar que você bebeu demais... Isso!... Tá bem...  Não se preocupa com isso...  Não, não precisa chamar...  Vou indo. Eu avisei pra você comprar o Engove!? Agora, toma um café amargo  que  passa...  Bom descanso! Tchau, tchau, tchau...



Pausa. Celso surge, o paletó sobre o ombro, tentando - com  dificuldade  -  afrouxar gravata. Ouve-se o barulho de um automóvel que se aproxima. Celso dando sinal.



Táxi!... Táxi!... Táxi!...

          O som do veículo se afasta.



Merda! Vaziozinho... Esse aí tem a mãe zona. Corno do cacete! Só pode ser um  chifrudo um cara desse. Porra! Vê uma pessoa na rua a uma hora dessa... (Olha no relógio.) Puts! Três e meia!

Corte.​
Voz femina em off, um pouco alterada pelo álcool e com certa irritação.



Amor, por que você não atende esse celular?!...



Celso um pouco mais irritado com o taxista.



É um canalha! Eu não estou mal arrumado nem nada?! Pô, quando o cara tá todo esculachado, aí vá lá... Dá pra pensar que é marginal, de noite, rua deserta... Mas, uma crioulo  na  maior  estica...?  Terno  e cima, cabelo cortado, barba feita desodorante do mais caro, grana no bolso... Vem um safado com uma lata velha caindo os pedaços - que o meu vale 100 daquela porcaria - vem precisando ganhar o leite das crianças, eu dou sinal, a figura não para!?...  (Indignado.) E deve ser um fodido... Porque um  cara pra pegar um carro e ficar à noite toda atrás de passageiro só  pode estar na pior. Ou então é ganancioso. Trabalha num emprego de dia, dá uma cochilada à noitinha e sai à luta de novo pra ver se enriquece. Enriquece porra nenhuma! Tá mais fácil dormir no volante, dar porrada com  o carro e pronto... Era vez! (Pausa.) Esses caras.. Vai ver que aquele viado não gosta de preto. Será que não me viu? Viu!... Olhou pra minha cara e virou o rosto, como quem diz: “Te vira, negrão!” É... Viu sim. Acho que... É, ele passou debaixo da luz do poste. Sou capaz de adivinhar: tem trauma de infància. Vai ver que algum crioulinho enrabou ele quando era pequeno. (Pausa. Resignado,  mas com certa mágoa.) Não tem nada...  (Descontraído.) Mas que vai furar o pneu na próxima esquina, vai!... A merda é que desse jeito a Eva vai chegar antes e aí eu vou ter de discutir a relação de madrugada. Porra, vai ser barra! Mas, ela vai chegar mais tarde, foi pra mais longe...



Barulho de outro automóvel se aproximando. Celso dando sinal.



Táxi! Táxi!...


O barulho se afasta.



Ocupado!... Por que não apaga a lanterna escrito táxi, pô?!... Deixa rolar... Ah, vou ligar pro Rádio-táxi Corujão... Iiii..., caracas! O celular ficou lá... Bem, mas é melhor do que me arriscar a ficar a essa hora sendo monitorado pela Eva. Já pensou eu ter de explicar que o carro também ficou no pátio da empresa? Eu devia é ter pegado o carro do Osmar. Mas, também, uma BMW X6, zero... Puta carrão! Flutua!... É, mas vai que eu dou ou levo uma porrada por aí... É, isso ia ser foda. Era até capaz de o velho querer enrolar mais com a minha promoção, porra! (Pausa.) Fazer o quê? (Dá uns tapinhas sobre a própria cabeça.) Você também, viu, Celso!... Ir na onda do Osmar dá nisso. (Imitando.) “Deixa teu carro, Celsão. Te levo em casa depois...” O cara toma todas dá vexame na festa, você ainda traz ele em casa... Babá de bêbado. O cara não pode ver garrafa de uísque, pô!  Parece  criança em mamadeira. Bebe até babar.  Hum...   Ficou bebinho da Silva.  Silva nada!  Bebinho pra  Matarazzo! Tem grana. Só não sabe aproveitar. Trabalha na empresa porque quer. O pai mesmo nem obriga. Fica lá inventando moda, querendo dar uma de gerente... Nem sei por que saio com um cara desse... (Pausa. Tenta avistar um táxi.) Ah, o Osmar que se foda! Lei de Murici, cada um cuida de si. Tenho é que chegar logo em casa, porra!



Som de passos apressados. Celso assusta-se.  Barulho de arma sendo engatilhada. Celso encosta-se ao muro com as mãos pra cima. Expressa muito medo.



Certo...  Certo... Eu já entendi... Não precisa atirar... Tá certo... Grana?... Tem, tem grana sim. Fica frio, meu irmão!...  Eu...  Eu vou te dar a carteira sim... Mas, pode baixar a arma, meu irmão. Eu tô descoberto e não sou de briga... (Mais nervoso.) Certo, certo... Eu vou pegar... Eu vou pegar. Fica frio.



A partir desse momento Celso dirige-se a um interlocutor, o ladrão, que se encontra no público e muda várias vezes de posição. Celso, com dificuldade, retira do bolso de trás das calças a carteira e estende-a.



Toma aí... Pode pegar... Eu sou de boa paz, meu chapa. Ahn?... Certo, certo...  Vou jogar, mas não precisa atirar, hein!...



Com muito jeito lança a carteira.



Certo?  Tá,  até meia forrada, legal?... Pode pegar, sem susto... Não sou de briga não? (Pausa.) Não... Que isso...! Eu sou crioulo, mas não sou manhoso não... Já pensou?... Eu, aqui de mão vazia, vou dar uma de valente, você com um trabuco desse? Ahn? Certo, certo, eu encosto.



Celso encosta-se no muro com as mãos para cima. Tentando relaxar um  pouco,  descendo  os braços.



Já valeu a noite, certo companheiro? Meu pagamento. Hein?... Pô, meu?! Mais grana? Se eu tiver mais algum são uns pichulé no bolso. Dinheiro de cigarro... Nem vale a pena!



Assustado, recuando como se fosse subir de costas no muro.

Certo, certo!...


Levanta as mãos de novo.



Não leva a mal, tô só trocando uma idéia com você... Vou pegar. Mas...  (Apelativo.) Dá pra abaixar a arma, meu irmão? Eu sou da paz.



Celso coloca a mão no bolso direito - mantendo o braço  esquerdo  levantado - retira umas notas amassadas e joga. Depois - levantado o braço direito - retira uns papéis do bolso esquerdo e joga também em direção ao “ladrão”, o público. Em seguida retira do bolso traseiro um lenço e lança-o na mesma direção.



É... Eu te falei...  Agora não tenho mais nada... Joguei o lenço porque tá limpinho. . .  Se quiser aproveitar... Ahn?... Não, não tenho. Pode ver, ó...



Celso tira a gravata e exibe o peito e o pescoço.



Não uso...  Aliás  nunca gostei  de  correntinha...  (Tenta ganhar confiança do ladrão.) Minha mulher me deu uma, mas...  Nem usei, acho até que perdi.



Intimidado, mas sem pavor, volta a levantar os braços.



Que isso!? Você acha que eu vou rebentar correntinha diante dum trinta e oito desse?... Tá certo, tá certo!...



       Até este momento, Celso está se ajeitando com o paletó nas mãos. Vai tirar a camisa social  pra fora da calça, o paletó cai. Ele termina​
de tirar a camisa fora da calça e sacode-a bem.



Olha aí, não te falei? Não tô escondendo jogo não... Ahn? Ah, sim, o paletó, você quer o paletó... Tá, tá certo... Posso chutar?



Celso chuta o paletó. Não consegue deslocá-lo muito. Assustado.



Tá, tá, tá... Calma, calma, calma... Eu vou jogar, legal? Fica tranquilo...  Não tô armando treta não...



Celso vai, com muito receio, em direção ao paletó. Agacha-se, sempre olhando em direção à suposta arma, dobra o paletó, bem dobrado e atira-o, com cuidado, mas com força, em direção ao ladrão. Relaxando um pouco.



É, o que tem aí é só documento... Tá certo, mas se você tivesse falado em cheque eu tinha entregado o talão... Celular? É, só tem as baterias, cara. Te juro, ficou no trabalho, lá no meio da papelada. O quê? Não, não vai tocar nada não. Deixei lá mesmo. Fica frio. Não vai ser preciso gastar nenhuma bala comigo não. Eu sei que não dá pra entender esse negócio de bateria... Eu uso pra no caso de uma descarregar, ter as outras... Recebo muita ligação, mas o aparelho ficou lá no trampo, eu juro, cara! Eu juro! Eu sei que a rapaziada precisa de celular... Faz parte das paradas de vocês... Dá uma ligada, manda a pessoa depositar uma grana na conta senão mata o parente dela... Eu sei, meu irmão... Mas, o que eu vou fazer se esqueci lá no serviço? Não tô te enrolando não. Celular não vale minha vida. Se tivesse aqui eu já tinha te entregado. Tá aí contigo tudo o que eu tenho, cheque, cartão... O quê? Ah, a senha? Espera um pouco, é... É que eu tô nervoso, não tô lembrando... Tá, tá, eu não vou dizer a senha errada pra você me me perseguir e me apagar depois... Nada disso. Não, eu digo, é... Espera aí... Ah, já sei: 13Eva*... Isso... O asterisco tem sim. Não tinha antes, mas o banco implantou no sistema faz uns três meses... É, mas aqui, neste bairro de bacana não tem caixa eletrônico e além do mais, a esta hora, pelo menos meu banco tem restrição de saque... O quê? Me sequestrar? Bobagem, cara!... A pé é complicado. E também tem casa aí que tem câmera até na rua... (Pausa.) Eu sei, eu sei... Eu entendo... Você tá no seu direito... Não estou fazendo média, não, sangue bom. Mas eu entendo... Eu também já tive dificuldade na vida e eu sei como é que é... (Procurando relaxar.) Na falta de emprego, cada um tem de se virar como pode, certo? (Intimidado.) Ah, claro, claro... Se você não gosta... Bem, aí tem mais é que não trabalhar mesmo... (Pausa.) É, eu ponho algum documento na carteira. (Queixoso.) É difícil, né, rapaz, tirar documento, não é?... Hein? Ah, essa daí... Bem, é... é a minha noiva... Ah, sim, quer dizer, é a minha mulher... (Encabulado.) É... Não, que isso?... É que deu certo. Sabe como é que é, gostou do crioulo, a família não pôs areia, a gente chegou junto... Não, não, também não é assim... Eu acho que não tem nada a ver. Ela é uma branca decente... Mas você também é loiro e eu não posso dizer... (Assustado.) Não, não, não quis te ofender... Só falei que não tem nada a ver. Pra mim todo mundo é igual. Preto, branco, amarelo... Como? Eu? Não, não acho não... Eu não sou melhor que você. É que... Bem, eu dei mais sorte no emprego... Isso não tem nada a ver. Cor não tem nada a ver. (Riso tentando descarregar tensão.) Ah, isso aí eu não sei... É, isso mesmo: Celso Branco de Souza. Meu nome é esse mesmo. Sei lá o que meu pai arrumou... Bem, tem cara por aí que tem sobrenome “Negrão”, vai ver tem olho azul, é branco... Esse negócio de nome é um rolo... (Ri amarelo.) Tem Coelho, Leitão... É... (Pausa.) Como? Não. Eu, racista? Não, que isso!? Meu melhor amigo é um branco. Só que não tem o cabelo loiro igual o teu. O cabelo dele é preto, liso... Acabei de deixar ele em casa... Pra mim não tem diferença. (Acuado.)  Ahn?...  Ah, sim... O “bobo”. Ah, certo. Tudo bem, tudo bem...



Retira o relógio com certo tremor nas mãos.



Posso jogar? Não vai quebrar não? Ah, pô, assim...! Se você não segurar você me dá um tiro pô!?... À toa... Eu não tô nem aí com relógio. É teu meu chapa! (Pausa.) Tá legal!... Tá legal... Mas, pô, segura... Não vai deixar cair... Você vê, eu entrego tudo, na manha, sem reagir... Aí, segura, hein!



Celso lança o relógio com muita cautela. Não há barulho de queda. Celso respira aliviado. Descontrai-se.



É, é  bom  sim.  Comprei de contrabando... Não, não sou entendido do assunto, mas a gente...  Podendo, a gente faz um negócio bom  é ou não é?... Um amigo lá do meu serviço que faz uns trambiques. Chega 1á na Baixada Santista e “descola” uma muambazinha... Não, eu não sou chegado... Só comprei dele esse “bobo” e uma caneta que eu dei de presente pro meu filho...  Você viu a foto dele aí na carteira... E, taí... Um garotão!... Oito anos... Tá me esperando em casa... Sabe como é filho, né? Esse aí é muito ligado no pai dele, entendeu?... (Pausa.) Mas... E aí, tô liberado?



Sem jeito. Desapontado. Indignação profunda.



Pô, meu irmão, aqui na rua?... (Tenta ganhar tempo.) Sabe como é que é... Iiii, rapaz, vem vindo um carro aí...  Certo, certo...



Som de automóvel num crescendo. Celso deita e se encolhe. O ruído de motor se distancia. Ainda no chão, expressa seu temor.



Certo... Certo... Certo... Mas não atira... Não atira...



Levanta-se. Prensado contra o muro, como se quisesse escalá-lo de costas mais uma vez, vai se despindo. Atrapalha-se para tirar a gravata, camisa e os sapatos. Toda esta operação vai sendo realizada de pé.



Tudo bem! Eu vou tirar... Dá só um tempo... Tá, tá, tá... Tô terminando...



Enrola, por fim, toda a roupa e joga para assaltante. Está preocupado em não ser visto  seminu, apenas de cueca. Olha para os lados. Treme. Humilhado.



Pó, mano, vai me  deíxar  na pior,  pô!...  Vou ficar pelado, aqui?... O que que, tu vai fazer com uma cueca, pô?... (Intimidado.) Tá certo, tá certo...  Mas, pô, não vai atirar, né?... Eu tô fazendo tudo direitinho... Pô!...



Assustado, vai tirando a cueca, olhando para os lados e para o ladrão.



Tudo bem... Tudo bem...



Amassa a cueca e lança-a. Cobre a genitália com as mãos.



Tá tudo O.K... Não vai atirar, hein, pô... (Implora.) Abaixa a arma aí, vai...  Eu não tenho mais nada, poxa! . . .  Não vou caguetar pra ninguém...



Encosta-se no muro.


Certo, certo...



Vai se agachando, se encolhendo. Relaxa um pouco. Passos se afastando... Celso vai se levantando. Entre os dentes.



Filho da puta...



Ouve-se um estampido e os passos de a1guém correndo. Celso cai e fica imóvel. Pausa. Som de sirene  de tático-móvel. Celso  levanta-se em pânico. Tenta se cobrir com as mãos, mas termina optando pela fuga. Corre pelo palco. Um foco de luz agita-se na perseguição. Ouve- se mais tiros. Quando o som da sirene aproxima-se ao máximo, Celso já está  acuado, sob um foco de luz.



VOZ
(Off)


Documento!...



Celso, derrotado, cobre a genitália. Expressa  profunda indignação. Por fim, começa a rir,  num  crescendo. Traduz indignação e graça. Chega à gargalhada de pura gozação, mantendo sempre as mãos sobre a genitália. Súbito, petrifica-se. Vira estátua. A luz vai amortecendo. Simultaneamente, ouve-se um hino assobiado.

fim desta peça.





Lançamento

Escritor

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