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CUTI. Quizila. São Paulo: s.n., 1987. 60p.

SOB A ALVURA DAS PÁLPEBRAS


Meu avô me disse que matasse a princesa. Peguei de suas mãos as tripas do bisavô e com elas trucidei a Madame da Liberdada.

Criminoso! - vociferou Rebouças, pensando na última contradança. Tinha sido deixado num canto pela arianice aguda de todos os presentes, mas a Dona Treze viera na direção do engenheiro negro (“””””””maravilhado’’’’’’’’’’’) e tirara-o para dançar. Esta  lembrança, um arco disparando réguas e compassos pontiagudos.

Assassino! - gritou  Patrocínio  desesperado. Eu tinha a ele negado "a mão ao menos" quando enterrei o cadáver. Ele não conhecia o Cemitério da Indignação Pro

       funda. Não pôde mais beijar aquela alvura principesca cheia de dedos e anéis.

Traidor! Traidor! Traidor! - escravos, recém-libertos debaixo de flores, me perseguiram até a entrada do quilombo do meu avô: O Coração de Nós Todos, um pouco acima da Barriga, do lado esquerdo sempre.

Lá entrando, não fui aplaudido nem censurado. Apenas o Conselho dos Ancestrais me disse, em coro:

Bom sirviço, minino.

E Zumbi, sorrindo:

Pod’scansá. Já é dia 14. Eles vão pensar!

 

 

ENTREATO

 

“Difícil lição de vida

tentar aprender esquecer você!”

(“Boletim” - Jamu Minka)



Envelopado na manhã o TEU adeus foi deixado sob a minha porta. Olhei pela janela: nenhum lenço ao vento, apenas o ódio defraudado naquelas páginas, com todas as cores berrantes. Minhas justificativas de nada adiantaram para amenizar os primeiros dias. Ficaram pedantes no decorrer de algumas horas. No domingo seguinte, tranquei-me em casa, pensando besteiras. Muita violência em jogo. Não comi o dia todo. Não atendi telefone nem campainha. Uma solidão rochosa em torno. Não bebi. Não fumei. Concentraído o tempo todo na minha perda irremediável.

Há muito tempo não chovia. Vasculhei com esperança as nuvens do céu. Nada. Lá fora, o dia também se petrificara.

O único desejo que se apresentava era o de sangue, sangue aos borbotões, quente, vivo, para livrar-me daquela rejeição desértica, áspera. A consciência, no entanto, metia luz em cima dos projetos pacientemente concebidos e negava o fundamental: o direito moral colocá-los em prática. Eu fraquejava de momento, andava pela casa, e, depois de  alguns passos, eu já adquirira de novo meu direito de praticar aqueles crimes terríveis, porém salutares em minha. condição miserável.

A noite chegou sem avisar e surpreendeu-me com a arma na mão. Era o último projeto, assim concebido: eu mandaria flores. Junto, uma carta das mais lindas, onde eu proporia uma amizade profunda, a partir de uma resignação farta de humildade. Diria mesmo não querer vê-LA, considerando ser o mais propício. Muitas as expressões de desculpa, sem pieguice no entanto. Usaria toda a arte da mentira travestida de sinceridade, pureza e compreensão. Faria a figura de um velho amigo. E ensaiara até como colocar as mágoas, os rancores, o ódio, tudo dentro de um baú inteiramente decorado de ternura. Com o tempo, e após os testes inúmeros que TU farias para provar a minha sinceridade, teríamos um encontro. Conversaríamos coisas outras. Eu falaria até de um novo amor e, depois de certa encabulação, receberia de TI um sorriso cúmplice. Em seguida, esta mesma cumplicidade se transformaria, a partir de próximos encontros, numa confiança sorridente. Até que um "acidente" me colocasse de cama. Então, num telefonema desproposital, eu denunciaria minha condição de enfermo, recusando de pronto a TUA visita.

- Não, não é preciso. O pior já passou. O quê. Não se trata de desconfiança, Zulmira... É que não precisa mesmo. Estou bem...

Mas TU virias. A maquiagem estaria perfeita no meu rosto e a enxurrada contida nos bastidores, enxurrada vermelha da minha vingança. Quando a maçaneta virasse, eu sentiria que a serpente de  meus músculos se preparava:

Entrarias no pequeno apartamento. Eu me sentiria o melhor ator do mundo. Braço engessado, algumas marcas de mercúrio cromo, joelho enfaixado. Mancar seria fácil. A compaixão TE despertaria o antigo afeto. Eu veria em TEUS olhos as fagulhas do nosso amor. Então, quando desviasses o olhar de  mim, a faca da ponta sairia do meu travesseiro e tudo seria sangue, muito sangue, gritos (eu queria ouvi-los! ) e satisfação.

Mas, saltando pela janela, a noite me surpreendeu com a arma invisível na mão. A consciência acendeu a luz. De novo! Eu premeditando um crime?... Realizado o flagrante da minha miséria, ante a testemunha de mim mesmo, o nada tomou corpo com a totalidade da desesperança. O derradeiro plano esvaiu-se inteiro.

Vencido assim pela lucidez, envolto na  escuridão, ouvi a Tuausência girar a chave na fechadura. Acionou o interruptor. A sala clareou-se. Ela, emoldurada na porta, fixando-me.

Loira, como sempre foi, vestia roxo e tinha olhos a cor verde-musgo. Nos lábios finos, uma ironia cortante. Por fim, sorriu com toda a plenitude de seus dentes de ouro, inteiramente carcomidos. E disse, depois de largar sua bagagem no chão:

- Voltei. E desta vez para ficar.

A fatalidade percorreu-me a espinha num relâmpago gelado. Abaixei os olhos. Em suas unhas contemplei o esmalte marrom, realçando sobre a palidez das mãos, pés. e pernas enraizadas de varizes azuis. O sapato aberto continuava o roxo do vestido, cuja barra cobria levemente os joelhos. Quadris um pouco realçados, cintura exageradamente fina, busto nenhum, ela tinha o talhe de quem  sofrera correções de perfil.  Um nada de nádegas.

Mexeu os cabelos, exibiu o vento. Alicateou seus olhos nos meus. Não tive saída. Capitulei.

- Sim. Está bem - e curvei a cabeça.

A partir de então, Tuausência. passou a conviver diariamente comigo, debaixo do mesmo teto.

No princípio, .como sempre acontece aos casais que voltam a conviver depois de separações litigiosas, houve a delicadeza de esgrima na luta pelo espaço. Sem dúvida, ela acabou ganhando; depois de destruir todos os TEUS pertences. Encheu o guarda-roupa. com vestidos, camisolas e muitos penhoares. Meu paletó, calças e camisas passaram a ficar no varal (sujos), sobre as cadeiras e mesmo pelo chão. Quanto às cuecas ela não as suportava ver e as metia debaixo da minha (nossa) cama de casal.

Passei a ostentar no rosto as marcas das unhas. de Tuausência. Nossas brigas eram freqüentes e sua agressividade não se intimidava diante da minha força. Ela apanhava muito, mas sempre reagia com suas lâminas naturais, os olhos que se amarelavam e muitos xingamentos.

Um dia resolveu dar uma festa. Concordei para evitar mais atritos. Ficou dengosa, pegajosa, "bem" pra lá, "benhê" pra cá. Na semana tratou-me como seu namorado, às vésperas eu era um noivo, e, naquela noite, um marido bem adulado. Seus convidados - pois eu já me divorciara da amizade - eram uns tristes alcoólatras. Todos brancos. Cantaram, o tempo todo, sambas- canções de amor perdido. Trataram-me com deferência sobretudo quando me enchiam o copo. Não faltaram o elogios à minha alma branca. Bebi  com eles até de madrugada. Ao todo, éramos treze na tal festa-patê-de-sardinha-e-gin. Não vi quando saíram. Eu tinha ido ao banheiro vomitar os  meus excessos e perdera a noção do tempo. Quando voltei, a sala estava vazia de gente. Tuausência masturbava-se na cozinha, enquanto comia os últimos restos de patê. Alternava a mastigação com profundas tragadas num cigarro sem filtro. Olhei da porta e tive ímpetos violentos. Ela não se intimidou, continuando suas fricções, o come-come e fumaças. Atingiu o orgasmo com um grande urro  Uma garrafa de gin, que estava vazia sobre a pia, partiu-se. Tuausência espumou pela boca, dizendo com sarcasmo:

- Por que não vem, nego filho-da-puta?

Minha vista escureceu. Só parei de esmurrá-la, quando percebi que ela não esboçava reação, exceto  o riso e olhar de quem tem garantida a vingança. Meu ódio pegou-me pelos colarinhos e pôs-me pra fora casa. Fui procurar consolo na manhã que já raiava. O sol, entretanto, não me ofereceu nenhuma porta ou janela para respirar outra vida. Voltei para o estreito corredor do cotidiano.

Tudo recomeçou. Eu saía, ela ficava em frente à televisão, o cigarro entre os dedos. Quando à tarde eu retornava, brigávamos. Eu não tinha mais sonhos. Só pesadelos. Num desses nossos reencontros, depois da habitual troca de  murros e arranhões deixei-me cair em mim. Olhei-a. Era deplorável seu rosto e sinistra a ironia que nele se mantinha. Fui vencido pelo primeiro soluço e desabei. Chorei todos os tonéis envelhecidos desde a minha irremediável perda. Ela saiu da sala em direção ao banheiro, rindo a princípio, gargalhando depois. Eu a esqueci por um tempo de completo vazio. Ao me sentir aliviado fui procurá-la para tentar uma conversa que nos possibilitasse uma tolerância menos violenta. Estaquei próximo à porta. Uma sombra balançava. Dei mais um passo e vi! O cinto enlaçava Tuausência no pescoço, ligando-o ao cano do chuveiro. Estava nua, inteiramente roxa, enormentumescida língua pendurada e olhos saltando. Quando fui tocá-la, a campainha soou. Tremi. Alguém girou o trinco. Corri ao encontro, empurrado pelo pânico.

Eras TU, entre os lábios um sorriso com a ternura de todos os marfins. Os olhos, dois sóis negros irradiando a aurora polar da minha vida. TEU rosto jacarandá, aconchegado na crespa e noturna auréola dos cabelos, era o desenho da minha paz. Abraçamo-nos.

Fusão de eternidades.

O cadáver apodreceu no banheiro naquela mesma noite. Restou apenas cinzas. Ao raiar a manhã, eu as recolhi e usei para adubar a samambaia que trouxeste.

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