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CUTI. Sem centenários. (texto não publicado).

Nas duas últimas grandes efemérides (Cem Anos de Abolição e Trezentos Anos de Zumbi), parte da população afro-brasileira empolgou-se, realizou eventos dos mais variados, desabafou em palavras de ordem, fez planos para o futuro, ganhou manchetes de jornais, elevando o nível da esperança coletiva perante a vida. Tudo isso, diante de uma maioria apática, indiferente à luta contra as misérias herdadas do passado e mantidas no presente. Dentre os entusiastas das datas comemorativas contou-se com os que só nessas ocasiões aparecem. Os negros de vez em quando. Depois, fazem o possível para esquecer que são e que isto tem um significado pessoal e social.

Funcionando como motivadores, certas datas movem dentro das pessoas mais que a crença de que algo vai mudar. Este algo mais é a ilusão de que a mudança se dará como que por "milagre", basta gritar ou aplaudir. Somos um povo messiânico, nós os brasileiros. Aguardamos que alguém vá resolver nossos problemas. Se investimos, é como quem reza e espera o milagre. As eleições acabam funcionando desta maneira. Mas, a fantasia é uma doença humana. Doença? Que blasfêmia! dirão os que fazem da fantasia uma profissão ou uma eterna maneira de sustentar o medo de encarar a existência humana e suas interrogações mais inquietantes.

Sem centenários, a população afro-brasileira perde excelentes fatores de identidade e projeção na sociedade como um todo. "E agora José?" Foi tudo em vão? O problema da fantasia é que ela mobiliza em nós expectativas excessivas. Ora, se nas efemérides buscamos soluções mágicas, nosso esforço passa a ser devorado pelo sentido passageiro, próprio de comemorações de acontecimentos datados. Mas, se tentarmos ver um pouco mais fundo, há inúmeras conquistas sociais que passam despercebidas. O Movimento Negro vive às voltas com o desânimo (é só lembrar quantas entidades nasceram, não cresceram e sumiram, desde o pós-abolição) em duas manifestações básicas: por um lado, a expectativa excessiva sobre um empenho de pequena expressão, quase sempre ocasional, por outro o pessimismo de considerar que a luta está irremediavelmente perdida e que o esforço despreendido não adiantou nada. O pensamento vai, desta maneira, vivendo de extremos: ou tudo ou nada, ou sempre ou nunca... Para grande fossa, muitos embarcam em novas ilusões. Por exemplo o "carnaval para esquecer". E dá-lhe samba-enredo lunático! Quem vai para a avenida com essa idéia, dança. Mas num outro sentido: ressaca de fantasia, fossa de expectativa individual. Depois, olha em volta, e vê que não houve mudança. Ou melhor, não enxerga, não quer enxergar que o resultado depende do empenho. E, lembrando um verso do poema Resíduos, de Carlos Drummond de Andrade, "de tudo fica um pouco". É exatamente deste pouco que fica, e se acumula a tantos outros poucos conquistados, é que vamos realizando as mudanças, para melhor ou pior. O fim dos centenários não deve ser motivo de desânimo para ninguém. Os que embarcam na solidariedade afro-brasileira só nessas ocasiões, certamente receberam uma potente injeção de ânimo e devem estar com mais dificuldade para "esquecer".

Sem efemérides mesmo! O Movimento Negro não depende de datas para existir. Não está atrás de conquistas fáceis. É ação de um segmento da população brasileira para existir mais, em todos os sentidos da atividade humana, alterando as relações sociais. Os formadores de opinião da grande imprensa, sobretudo os racistas, veicularam, o ano passado, as fragilidades das organizações, com o objetivo de desacreditá-las e operar nas pessoas envolvidas o desânimo, e nos arredios um distanciamento maior. Mas, fizeram um serviço que o Movimento Negro precisa aproveitar. Ora, se há fragilidades, cumpre ao processo de auto-crítica promover a revitalização.

Quem, no carnaval, vai para a avenida e canta, samba, sua a própria realidade, certamente não volta triste para casa após o desfile. Sabe que alegria e desabafo são excelentes investimentos pessoais. Isso vale para os passeios e outros que tais. Mas, quem acredita mesmo que é Napoleão, esse cai do trono e se machuca feio. 1995, Tricentenário de Zumbi, não deixa saudade. Deixa lições para o dia-a-dia de cada um de nós e de nossas organizações. Assim como carnaval é desengano pra quem se engana, efeméride é ilusão para quem não percebe que Movimento Negro é parte da própria vida. E quem não encara a dor de frente, não é capaz de uma alegria de verdade. A ausência de centenários vai contribuir para uma solidariedade mais sólida. Certamente.  E para uma reflexão mais séria de como encarar as datas de "maio", "novembro" e "fevereiro". Quem sabe, a consciência histórica amplie-se mais no sentido do presente e do futuro. Pelo menos, o influxo das ilusões tende a ser bem  menor.

 

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