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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS - DEPARTAMENTO DE LETRAS
PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS - PUC MINAS
CENTRO DE ESTUDOS LUSO-AFRO-BRASILEIROS
Literaturas africanas de língua portuguesa
Identidade e alteridade na literatura
Cadernos CESPUC de Pesquisa
Série Ensaios – n. 6
Junho - 1999
O escrito pelo escrito mal escrito
Júlia Maria Amorim de Freitas*

RESUMO
Análise do conto “O dito pelo dito Benedito”, do escritor Cuti, refletindo sobre o jogo de linguagens sobre o qual se constrói, diluindo fronteiras entre oralidade e escrita. A máquina de escrever é vista como metonímia do processo, em que se inclui a releitura da figura do intelectual.


O narrador de composições poéticas próprias da cultura iorubana, chamadas orikis, segundo Hampté Bâ, citado por Antônio Risério “recebeu de herança uma parte do poder criador divino, o dom da Mente e da Palavra” (Risério, 1996, p. 31) e utiliza este dom para criar o seu ori, e no caso, pode ser entendido como o seu destino. Seria possível estabelecer uma relação desse tipo de narrador com o narrador do conto “O dito pelo dito Benedito”, do escritor Cuti?
O narrador do conto apresenta-se como um escritor, um tipo de intelectual. Alguns elementos do texto nos ajudam a identificar peças da imagem desse intelectual que o narrador quer – preto que escreve – preto intelectual.
O conto, todo escrito em minúsculas, com exceção do título, evidencia que o narrador sabe o que está fazendo, ou seja, tem conhecimento da linguagem em que deseja se expressar. Ele quer mostrar que a língua que utiliza na escrita seria marcada pela oralidade, sem se reduzir a ela. Se pensarmos que uma das características da oralidade é exatamente não se valer dos sinais de pontuação que a gramática tradicional estipula e determina para, na escrita, assinalar as pausas e as inflexões da voz na leitura, separar palavras, expressões e orações que devem ser destacadas e esclarecer o sentido da frase, afastando qualquer ambigüidade (Cegalla, 1985, p. 62), o narrador, ao usar as minúsculas, ao falar desenfreadamente e utilizar em sua criação recursos de pontuação com o intuito de dar ao significante um novo significado, estaria sinalizando para o leitor que o oral está presente em sua escrita. No entanto, ao usar a máquina de escrever parece decompor a própria idéia de oralidade, mostrando, ao mesmo tempo, que a sua escrita é outra, é diferente da consagrada. Ao se utilizar da máquina de escrever, ele está mostrando algumas das possibilidades que as mesmas letras de uma mesma língua, de uma mesma máquina podem ter. O narrador não é um falador, mas é verborrágico: dispara a escrever um desenfreado palavrório e parece que jamais irá pôr fim à sua voz. Esse narrador pode ser confrontado com João Vêncio, o narrador de João Vêncio: os seus amores, de Luandino Vieira (1987), que fala diante de um interlocutor silencioso. Mas, diferentemente de João Vêncio, o narrador, no conto que estamos lendo, não pede licença a ninguém para escrever.
Esse narrador intensifica a imagem do intelectual criador, do escritor que se vale da máquina de escrever, metonímia do próprio intelectual, e escreve: “depois me pus à frente da máquina” (Cuti, 1996, p. 132),  refazendo uma linguagem sonora para certos tipos da máquina, como bem entende, como se tivesse a capacidade de produzir sons ou quisesse mostrar que pode usá-los do jeito que quiser como intelectual que é. Escreve por exemplo, “{{{, +, [[, %%” e se utiliza de outras teclas que imitam o som da máquina de escrever como “lept, lept, lept” e “chup, chup, chup”. Uma linguagem de ruídos, onomatopaica, que tenta imitar o som da boca com os sons da máquina. Uma forma que ele encontra de dizer que está desconstruindo a linguagem consagrada e criando outras linguagens, porquanto o narrador utiliza palavras outras, além de criar vários neologismos, expressões e gírias que não poderíamos dizer que fariam parte de uma linguagem comumente falada, mas apontariam para uma linguagem diferenciada, plena de marcas que escapam do controle, rompendo limites. Essa linguagem reduplica-se dentro de si mesma, como se no roçar as mãos nas teclas, ele inserisse outras, como suplemento de um discurso que se cruza com o discurso escrito.
Mikhail Bakhtin (1993) define como “polifônica” uma linguagem em que diversas vozes ideológicas contraditórias coexistem com a do próprio narrador, em pé de igualdade. O lingüista e pensador russo diz que todo processo de significação inclui, em sua origem, a visão do outro, ou seja, a palavra é irresistivelmente dupla, e a consciência individual só pode ser definida em sua duplicidade, quando inclui como parte de si mesma o ponto de vista exterior, o que nos torna habitantes de um território dialógico.
Diante dessas possibilidades, poderíamos pensar que o discurso do narrador do conto se constrói explicitamente em uma percepção dialógica e opaca do outro, logo, é reforçado pela diferença, e quer fazer saliente a impropriedade da sacralização da língua nacional, como sinônimo e marca identificadora do ser. No momento em que o narrador desterritorializa o domínio da língua consagrada ou a escrita dessa língua, ele está dialogando com códigos vários, mas de forma escorregadia, indefinida, serpenteada, livrando-se do jugo da própria língua. Transforma a linguagem em uma forma de escrita que foge aos padrões da língua dominante, e, reinventando-a, desestabiliza-a. A verborragia do narrador talvez advenha de sua ansiedade ante à impossibilidade de seu discurso dar conta de explicar tudo. De certa forma, este aspecto pode ser uma característica da língua oral – ânsia de falar com medo de não ter tempo de dizer todas as coisas. O narrador, imagem especular do autor, como linguagem do duplo, do múltiplo, busca acentuar a imagem do intelectual escritor. Toma assim, uma postura transgressora e irreverente, na tentativa de transcrever a oralidade captando os sons, os movimentos, a gestualidade e o canto que acompanham as palavras, expressando-a na escrita. Tal postura evidencia, também, a função que Edouard Glissant (1981) atribui ao poeta de colocar no bojo do discurso literário o incômodo, o inquietante da gênese criativa. Esse narrador quer a oralidade escrita, se quer escrito, e para isto, usa a máquina de escrever para encontrar uma forma de se ler e de se ouvir. Irremediável na sua linguagem, que seria a linguagem do outro, usa a máquina, para que este instrumento legitime a sua fala, leia-o. Dizendo de outra forma, deixa na superfície do texto a linguagem que cria – atormentada pelos lepts e chups e tipos ressoantes, que evidenciam a censura efetuada pela língua do outro à sua. Ao deslocar os sons da máquina de escrever para o papel, o narrador, em um insistente processo de mutação da linguagem, transubstancia o código oral, colocando no código mudo e surdo da escrita a parafernália e o zoado barulhento de uma dicção marcadamente oral, extremamente movimentada e gestual. Ele elabora, em extravagante textualidade, uma dicção que se quer outra, que se mostra através do e no discurso; e uma voz que se encontra em crise dessacralizadora do discurso intelectivo tradicional, e por conta disso, produtor de diferenças e lepts, chups, [, {, %..., ::, ... Esses sinais e formas fazem aflorar a impossibilidade da fala, no mesmo momento em que acontece a reificação da escrita. Na concretização do ato da escrita até a explosão total da linguagem, o narrador tensiona, facunda o seu discurso, a sua língua. Em outras palavras, ele busca uma fala outra que não se quer igual à do outro. Seu alfabeto de imagens parece criar-se sob o império do caos, do barulho, do zunido, do movimento e da palavra que é, antes de tudo, gesto e ação. Uma palavra que faz o surdo ouvir e o cego enxergar a partir da memória construída de fragmentos truncados em e das teclas de uma máquina de escrever.
O narrador do conto de Cuti é um conturbêbado plurilíngüe e prova que o mundo das palavras não é diferente do mundo das pessoas. Este narrador mistura onomatopéias, imitando o som do sono (zzzzzzzzz); imitando o som do leite saindo do seio (ssssssss unido ao + +); usa as reticências para indicar a suspensão do pensamento e a idéia de ama de leite (ama... chup... chup... chup... mentação); antes de colocar a palavra será, escreve vários sinais de interrogação (???????); escreve a palavra eternizar entre sinais de soma, que podem indicar tanto o eterno quanto a cruz e a morte (+++++ eternizar +++++); parte as palavras ao meio e insere-lhes pontos, colchetes e dois pontos (ben..dita [[[:::seja à com..[..tradição), ou seja, mostra-nos que aquilo que vem bem dito é, salvo exceções, contradição, sem deixar de todo a tradição. Antes abre a possibilidade de trabalhar com a tradição no que ela tem de mais rico no presente: a escrita crítica do intelectual. Assim cria neologismos como docelicada, introssaiu, conturbêbado; aproxima palavras de sons semelhantes como, por exemplo, absurdos-mudos, lapso-laço, ser-sucata, preto prato, proporciona a existência de dois níveis de discurso. Um discurso que diz “eu sou negro”, no qual ele afirmaria sua identidade na língua do colonizador, enquanto poderia dizer “eu sou brasileiro”, e então se afirmaria como híbrido. E outro, no qual está ensinando “eu sou negro” para não perder as diferenças. Ou seja, afirma que a identidade se constrói. Ao dizer “pensei torto e conturbêbado”, de certa forma, está mostrando que esta é uma maneira meio bêbada, meio torta de escrever, de dizer, de pôr no papel a sua escrita “conturbêbada”.
O perfil desse intelectual é traçado durante o conto em cuja história ele está indo atrás de um livro. Um livro que, não por acaso, se intitula o negro revoltado. Um negro revoltado que poderia ser visto mais como um escritor revoltado que como negro. Um escritor-negro-revoltado que está tentando se construir e reconstruir o mundo para se fazer sujeito através de uma linguagem que saliente a diversidade, a liberação e a libertação e que seja negra, mas não apenas negra. O narrador-intelectual-escritor tem a aspiração de tudo e de tudo dizer de todas as maneiras possíveis e busca o seu mundo. O que o intelectual busca? Podemos dizer que o livro é o verdadeiro pai do intelectual ocidental. Esse narrador compra livros no sebo e os lê. Assim ele pinta o retrato de um intelectual artista e pobre. Ele oferece as cores e as teclas para decifrarmos o lugar no qual o texto está sendo produzido – o das margens. Espaço que pode ser representado pelo artista que recupera seu próprio universo simbólico ao qual confere força e vitalidade, e, no entanto, é disperso e diverso.
O narrador diz que é estudado, o que o torna um indivíduo estudável. Este fato o irrita muito. Os que vieram estudá-lo, examinaram-no. Ele questiona o fato de ter que ser estudado, como se ele fosse um objeto. Por que será que ele teria que ser estudado? Os intelectuais acadêmicos que o estudam não encontram as trancinhas rastafari nem o antigo jogo de cintura, marcas exóticas e estereotípicas do africano, mas encontram um intelectual crítico e irreverente que quer fugir o tempo todo dos estereótipos, que já “amaciou pandeiro” quando moleque e arria as calças do intelectual de bumbum arrebitado que quer saber das suas leituras. Encontram um intelectual “que escrevia e publicava depois de inúmeros cheques pré-datados”, que lê o livro “o negro revoltado, do Abdias”, que respeita a macumba, que canta a mulher do próximo, que tem carteira de trabalho, que acredita em Exu, Ogum e Nossa Senhora do Rosário, que se escreve e se ouve.
O momento do ritual sagrado é significante no conto. É aí que o narrador recebe a confirmação da identidade híbrida que o configura. A partir do ritual, não há mais uma raça ou uma pele que o identifique, mas uma consagração da diversidade. No trabalho da encruzilhada estão presentes noivos loiríssimos, garrafas de uísque e saquê, o guia canta um trecho de ópera. Este fato evidencia a hostilização ao projeto nacional que exclui a separação entre o discurso e a prática. A celebração da diversidade, o momento supremo inclui a participação do outro e já não o faz o elemento preponderante, mas coexistente. O trabalho da encruzilhada pode ser visto como metonímia do intelectual latino-americano ser fronteiriço, e por conta disso, o lugar do encontro de linguagens, tempos e culturas. Fronteiriço não apenas porque articula os elementos da oralidade, mas principalmente, elabora-os artisticamente. As marcas aparecem fragmentadas. Não é sem motivos que o conto termina com a avó e o intelectual cachimbo na boca, os dois tricoteando sonhos da nação sagrada. A boca que fala, suga e chupa, incensa o transe levado pela mesma boca que sopra vida e força. O narrador do conto “O dito pelo dito Benedito” recupera e incorpora a tradição da ancestralidade sem falar nisso explicitamente. Assim, ele fica no limiar, faz um paradoxo e dissemina as fronteiras. O seu foulook (p. 137) é um olhar mais abrangente, uma mirada menos preconceituosa e mais humana, uma proposta menos linear e mais desestabilizadora, uma visão descentralizada do mundo e das palavras, que mescla espaços tensionados.
Esse intelectual que o narrador traça, que é ele mesmo, enfim, não se configura como o exótico, aquele que está no centro, mas como o diferente, aquele que é opaco, embaçado e por isso contém algo que não somos capazes de ler, de ver, mas que temos que respeitar. Entretanto, o título evidencia “o dito pelo dito”, ou seja afirma e confirma o que é dito e que é bem dito, e também vem em negrito e em letras maiúsculas. Mas paradoxalmente o texto não é dito, falado. E um texto escrito, e apesar disso vemos que ele nega esse aspecto de ser bem dito, bem falado, bem escrito, uma vez que exclui as maiúsculas, signos do bem escrever. É como se ele afirmasse o ditado “Fica o dito pelo não dito”. Enquanto ele afirma que temos de viver a oralidade, diz da impossibilidade da escrita dar conta da oralidade. A gestualidade da escrita de Cuti insere movimentos nas palavras e as torna orais. É uma diversidade de sons construídos, incontroláveis, breves, suspensos, surdos, mudos, inarticulados, tortos, conturbêbados. De outra forma, podemos dizer que seria um universo lingüístico que conta com a diversidade cultural para existir, que está sempre mudando, pulsando, movente e mutante, na tentativa de captar ou capturar os gestos culturais diferentes e mesmo divergentes do negro, para encontrar o seu espaço estético-poético.
Enfim, ao procurar marcas do intelectual, encontraram-se pistas de uma possível identidade africana. Ao mesmo tempo em que o narrador nega os sinais que o identificam como descendente de africano, acentua-os e os mistura indicando que ele pode vestir a capa do intelectual ocidental e ser um brasileiro. O narrador do conto parece ter unido ao dom divino do narrador dos orikis o dom humano e está por aí soltando fumaças em seu intelectual cachimbo...


ABSTRACT
This paper presents a critical reflection on the language games upon which Cuti’s tale “O dito pelo dito Benedito” is built and shows how the technique used by the author blurs the limits between the oral and the written. The typewriter is seen as a metonymy of this process in which the rereading of the image of the intellectual is included.

Referências bibliográficas
BAKTIN, Mikhail. O discurso no romance. III - O plurilingüismo no romance. IV - A pessoa que fala no romance. Questões de literatura e estética. A teoria do romance. Trad. Aurora Bernadini. São Paulo: Hucitec 1993, p. 71, 107-63.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas literarios y estéticos. Trad. Alfredo Caballero. Habana: Editorial ArteY Literatura, 1986.
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CUTI (Luiz Silva). “O dito pelo dito Benedito”. Negros em contos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1996, p. 129-41.
DERRIDA, Jacques. Le monolinguisme de l’autre. Paris: Éditions Galilée, 1996.
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RISÉRIO, Antônio. Oriki Orixá. São Paulo: Perspectiva, 1996.
VIEIRA, José Luandino. João Vêncio: os seus amores. Lisboa: Edições 70, 1987.

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Escritor

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